quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Beija-flores também acabam por te engolir

Ontem parei aqui na janela do prédio e a iluminação alva dos postes parecia cobrir a rua com um véu de seda, como se ela fosse casar, talvez com o dia que não tardaria.
Aquelas luzes tão pulsantes quanto os ferimentos internos da minha carne refletiam lá fora minha palidez e meu cabelo negro, como um borrão em papel bem claro ao mesmo tempo em que atordoavam minha vista. Cada uma delas lembrava-me beija-flores, mas sem aquele bater de asas veloz e quase imperceptível que me deixava maravilhado quando criança. Eu ficava ali no quintal com a minha vó, tomando um pouco de sol e brincando com os meus sonhos que há tempos já morreram, enquanto esses pássaros tão magros quanto meus dedos bebericavam com seus bicos compridos e finos a agua com mel que ela pendurava no pé de acerola, num daqueles recipientes rodeados por flores de plástico. Nessa época eu ainda gostava do dia e inventava milhões de motivos para acordar bem cedo e abrir minha janela.
O sol tinha lá sua beleza excêntrica no lugar dessa coisa comum e ardida dos dias atuais e eu queria mais dela. Procurava por ela e sempre a encontrava; ou num doce, num inseto diferente ou em alguma das muitas jornadas pelos terrenos baldios e sujos e completamente tomados por mato em cima de mato da rua em que eu morava. Também gostava de conhecer gente e de falar. Os amigos daquela época? Não sei onde foram parar, mas desconfio que estejam juntos com os sonhos, a sete palmos de estrelas moldadas em merda e barro. Tentei cavar algumas vezes, tentei até minha pá imaginaria se perder no turbilhão de fantasmas que carrego comigo; tentei com as mãos também, até que as unhas descolaram, quebraram e meu veneno escorreu pela palma, no pulso, no braço.
Não lembro quando e como todas as coisas se perderam, mas elas não se foram todas de uma vez, isso é fato. Foram caindo uma a uma, das mais bonitas até as mais feias. Meu corpo deve ter um encanamento furado, pra deixar vazar tudo o que entra nele. Tudo sai, não só por bosta e mijo, mas também pela respiração. Cada partícula que circula nos meus pulmões, a hora que encontra o céu novamente, leva alguma coisa com a ajuda desse vento negro que balança as flores dos canteiros das madames do edifício aqui da frente.
Uma vez você tenta amizade, depois amor; tenta sorrisos e abraços e conversas e conversas e conversas. Mistura todos esses intentos pra ver se forma alguma coisa bonita, pra ver se deixa a si próprio bonito. Eis que você sente a ferida ficar maior em vez de diminuir e cobre os olhos pra não ter que ver a hemorragia e a carne toda cuspir na sua cara.
Tudo isso cansa, as pessoas cansam e você mesmo acaba cansando as pessoas e tudo isso e essa porra toda termina por te engolir. Mas sabe, é tanta vida morrendo dentro da gente. Tanta sujeira sendo escarrada das bocas que mais gostamos, que fica mesmo difícil sentir alguma coisa que não seja cansaço.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Entre batatas, homens e baratas

Tinha mãos grandes e gastas, unhas que pareciam feitas de marfim surrado pelo tempo, manchadas de preto nas beiradas roídas. Abraçava com os dedos calejados e sujos o cabo esverdeado de madeira da faca. Na ponta da mesma, energizava-se um cometa frio e apagado como sua pequena vida de rato humano escondido no porão que ele mesmo traçou em seu peito com as agulhas que ganhou dos anos. A lamina partia em dois o coração amarelo, quase branco da batata enquanto sua alma escorria em gotas de suor por sua testa franzida e pelas rugas que sorriam no rosto.
Parou por uns instantes e enquanto a raiz sangrava silenciosa em cima da pia de mármore esbranquiçada e velha, moveu os chinelos gastos e ressecados até a janelinha que dava vista para o beco situado logo atrás da sua pequena casa. O orvalho formado da chuva do dia anterior ainda escorria do limbo das paredes do vizinho. Aquele verde era o único destaque do lugar; o resto se afundava num breu infinito de podridão, cimento e tinta escurecida, descascando pela idade. As transbordantes latas de lixo eram tão cinzas quanto seus dentes, tão húmidas quanto sua língua vermelha e assada.
Com as mãos ásperas apoiadas naquele vidro engordurado, pensou em baratas e nas tantas semelhanças que essas criaturinhas feias tinham com a sua raça. Os mesmos rostos escondidos na carapaça cascuda e imunda. As mesmas antenas voltadas para um céu que não existe; para uma água que não é limpa; para uma vida que não é vida. Os dois olhos fixos no teatro macabro onde sempre acabamos pisados, esmagados, estraçalhados. Ou pelos outros e seus olhos e espetos que valem mais que flores. Ou pela névoa infinita do pensamento que inflama no cérebro, na carne, na sola dos pés e mais tarde escorre invisível pelos olhos trêmulos.
Ele morreu ali sozinho, debruçado na janela, deitando vagarosamente sobre o assoalho coberto de pó.
Uma semana depois, quando os vizinhos resolveram avisar os filhos do velho sobre alguma coisa estranha que passava dentro daquele casebre, o corpo já fedia e espalhava pelo teto e nas paredes o cheiro triste de morte isolada, escondida. O coração da batata ainda lá, estático no gelo do mármore agora estava como o dele, partido pelo cometa do tempo.